Alô mundão! De repente, não mais que de repente, o coronavírus nos mandou pra casa e o horizonte que os meus olhos alcançam se resumiu à vista de minha laje. Aff! Se não fosse o bendito mundo digital, além de conversar com meus cachorros, já estaria conversando com as paredes também. Rsrsrsrs.
E nesta de enclausuramento, passei a compartilhar, mesmo que involuntariamente, os gostos musicais dos vizinhos, ou seja, o povo bota música nas alturas e obviamente obrigado a ouvir. Quem é principalmente de periferia, sabe bem do que estou falando.
É um verdadeiro festival: arrocha, axé, brega, gospel, funk, pagode, sertanejo etc. Uma miscelânia só. É o verdadeiro reino do ão: batidão, paredão, popozão, rabetão ...
Confesso que passei a me divertir pra caramba, prestando atenção nas letras das músicas. Exercício interessantíssimo e surpreendente. Dá para encontrar pérolas da língua portuguesa, assim como uma sensibilidade gigantesca para capturar sentimentos e relações humanas.
Então, resolvi compartilhar estas minhas impressões.
Começo com uma música presente na vida da maioria dos “coroas”. Sucesso absoluto, clássico das massas: O fruto do nosso amor (amor perfeito), interpretado por Amado Batista.
Amor perfeito
existia entre nós dois
sem esperar que depois
fosse tudo se acabar.
Mas neste mundo
que o perfeito não tem vida
não merecemos querida
viver juntos e amar.
Nosso senhor
para sempre te levou
nem ao menos me deixou
o fruto do nosso amor.
Aquele filho
seria a nossa alegria
eu senti naquele dia
ser um pai, ser o senhor.
No hospital
na sala de cirurgia
pela vidraça eu via
você sofrendo a sorrir.
E seu sorriso
aos poucos se desfazendo
então vi você morrendo
sem poder me despedir.
A canção está estruturada em seis estrofes, cada uma com quatro versos. A rima ocorre entre o terceiro e quatro versos da mesma estrofe (dois/depois, vida/querida, levou/deixou, cirurgia/via, desfazendo/morrendo) e os últimos versos das estrofes (1ª e 2ª estrofes: acabar/amar; 3ª e 4ª estrofes: amor/senhor; 5ª e 6ª estrofes: sorrir/despedir).
A letra desta canção descreve uma tragédia, uma verdadeira desgraça: a morte da amada e do filho durante o parto.
Interessante é que as pessoas a cantam com um certo entusiasmo, quando, em razão do sofrimento do personagem, talvez fosse de se esperar uma certa sofreguidão.
E nesta situação de intenso sofrimento, ele queixa-se da divindade (“nem ao menos me deixou o fruto do nosso amor”). Situação, aliás, já vivenciada por este que vos escreve. Quando a dor nos dilacera, é muito comum questionar o motivo da divindade permitir tal acontecimento.
Logo na primeira estrofe, no primeiro verso, temos a idealização do sentimento (“amor perfeito”), muito presente em momentos de tragédias emocionais. Em casos assim, a dor da perda tende a mascarar as imperfeições dos sentimentos, dos relacionamentos e das próprias pessoas. É como se fosse um desrespeito apontá-las.
Vale observar a rima rica feita com categorias gramaticais diferentes: o numeral “dois” com o advérbio “depois”.
Na segunda estrofe, temos uma linda construção, em que o personagem constata uma realidade fatual (Mas neste mundo / que o perfeito não tem vida) e, ao mesmo tempo, lamenta a negação da realização de seu desejo (não merecemos querida / viver juntos e amar).
Essa frustração também vai aparecer na quarta estrofe, pois a constituição familiar completa através do filho não ocorrerá (Aquele filho / seria a nossa alegria), assim como sua paternidade também não se realizará (eu senti naquele dia / ser um pai, ser o senhor).
Na quarta estrofe, ele descreve o ambiente onde ocorre a tragédia. Temos, aqui, também, a descrição de um interessante paradoxo (oposição de ideias opostas): “você sofrendo a sorrir”. Claramente, ela sofria a dor, mas sorria por acreditar está trazendo ao mundo seu filho amado.
Finalmente, na quinta estrofe, a descrição do momento exato da desgraça que se abatia sobre a vida do personagem. Estes quatro versos são magistrais. Imagine a cena e imagine a dor deste momento. Nada mais a comentar!
E seu sorriso
aos poucos se desfazendo
então vi você morrendo
sem poder me despedir.
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